Estudante, pensativo, jovem, eleitor, promíscuo, formador de opinião,
formador de baderna, autor, provocador, suspeito, inocente,
culpado, introspectivo, extrovertido, violentamente pacífico cidadão...
Quem
carrega nas costas o peso de tanta coisa levanta com dificuldade, os
psicotrópicos da noite anterior enfraquecem as pernas, o ódio turva o
raciocínio e o amor amolece a pedra que as pessoas chamam de coração.
Para
o corpo, descanso, a noite anterior fez estragos, o dia exige reparos.
Para a mente, atividade elevada, é a senhora do momento. O coração? Nada
em especial, jovem demais para enfartar...
Assalto à geladeira, a
garganta rebelada reivindica água, assalto à despensa, o estômago
amotinado cobra alimento. Estilhaços de uma bolacha maisena lhe rasgam o
céu da boca enquanto o âncora cospe sangue na TV. Indignação (fingida
ou não) dá o tom diante das câmeras, o que teria pensado o policial
antes de deixar as vísceras escorregarem por entre os dedos?
Muda o
canal, tiroteio fere criança em favela. Muda, marido esfaqueia esposa.
Muda, bombardeio mata família no Oriente Médio. Porra! Abre a porta da
varanda...
Bom dia aos pássaros que ainda não caíram nas gaiolas, de
fio em fio, de árvore em árvore. Bom dia ao Sol agressivo que empurra as
pálpebras para baixo, o braço esquerdo improvisa uma viseira, o direito
segura a grade. A primeira olhada para a rua e acha alguém pior, um
desconhecido dorme na calçada como se estivesse morto, ao lado, a
pixação com quatro palavras e cinco erros de português.
Nem varanda,
nem TV, nem a rua. Restou o rádio. Liga na primeira estação, uma garota
norte-americana com seu “i shake my ass” que lhe causaria uma ereção se o
rádio não fosse só som, troca de estação à espera de algo mais
edificante, não perde a esperança nem ao ouvir a Ivete Sangalo. Terceira
rádio: “Agora, meu irmão, minha irmã, coloque um copo com água na
frente do seu rádio...”
Daria certo? Corre até a geladeira tão rápido
quanto sua ressaca lhe permite, na prateleira da porta, encontra a
bebida, volta para perto do rádio a tempo de ouvir o final da benção:
“com muita prosperidade, amém...”
Está abençoado o líquido. Ele
levanta o anel metálico, ouve o pequeno estampido, dá o primeiro gole na
cerveja e exclama em voz alta:
É... acho que agora sara...
quarta-feira, 16 de março de 2011
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
Kryptonita
“Sobe, janelinha!”
Um minuto, dois minutos... Nada.
Uma eternidade. Cada segundo equivalia a uma hora, cada
pessoa que aparecia no msn era uma nova decepção.
Vez ou outra ele clicava nas fotos das redes sociais. A
imagem paralisada dela o fazia esquecer do tempo. “Que sorriso!”. Era como se
tivesse tirado a foto olhando para ele, a imagem tinha vida e atraía a
veneração do rapaz. Cada nova fotografia lhe causava uma sensação incomum,
semelhante ao que sentem os católicos fervorosos quando observam o rosto dos
santos nas esculturas sacras. Incrível era pensar que ela não estava olhando
nos seus olhos, e sim, na lente da câmera.
Sem se dar conta, passou mais de duas horas sonhando
acordado. Tempo hábil para planejar o que dizer? Talvez. Segurança total na
fala? Nunca. Havia sempre o risco de falar alguma besteira, por mais que se
preparasse. Era como uma partida de xadrez, um movimento em falso poria tudo a
perder.
A testa toca a mesa do pc, ele respira calmamente, ela o
visita em seus pensamentos. Há beijos, abraços, carícias, conversas casuais sob
a luz do luar, tudo muito fácil. Fácil e mágico.
Pouco mais de dois minutos com a cabeça baixa e um barulho
o desperta de seu transe. Ergue os olhos quase sem esperança, que se abrem de
forma incomum quando alcançam a cobiçada imagem daquele rosto.
O cenário de todos os seus flertes virtuais se repete: um
clique, um “oi”, um emoticon ridículo, um coração acelerado e quinze ou vinte
segundos de espera angustiante. Ela responde, pergunta se está tudo bem. Agora
vai:
-
Tá tudo bem sim. Ocupada?
-
Não.
-
Queria falar com você...
-
Comigo? Pode falar.
-
Sabe o que é, faz um tempo que tô querendo falar
contigo...
-
Hum... que honra!
Ela não estava sendo sarcástica. O melhor aluno da turma,
o homem genial, homenageado na câmara municipal, capa de revista de economia,
jovem empreendedor... eram tantos os méritos que ele atraía fãs por onde
passava. Era o tipo de homem que fazia os pit-boys desejarem trocar os músculos
por um cérebro. Nos quadrinhos que leu durante a infância, até o Superman um
ponto fraco: podia ser parado pela kryptonita. Ele não, não havia meios de
deter sua ascensão em todos os aspectos da vida. Todos queriam ser como ele,
todos queriam sê-lo por um dia, não existia um só indício de fraqueza visível
em sua personalidade. Existiria um calcanhar de Aquiles? Pouco provável, tinha
tudo precocemente: conquistas materiais, sofisticação cultural, experiências em
outros países, maturidade incomum. Era invencível.
Três minutos de espera e ela volta a digitar:
-
Cadê você? Não queria falar comigo?
-
Sabe o que é? Queria saber uma coisa...
-
Saber o quê?
“Bom, é agora ou nunca!”
-
Seu irmão tá bem? Fiquei sabendo que ele torceu o
tornozelo no jogo de ontem...
-
Meu irmão? Ele nem jogou! Tá louco?
-
Ah tá. Então me enganei, deve ser outro cara.
É nunca. Maldita timidez...
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