Na Estrada de Ogum

quarta-feira, 16 de março de 2011

Ressaca

Estudante, pensativo, jovem, eleitor, promíscuo, formador de opinião, formador de baderna, autor, provocador, suspeito, inocente, culpado, introspectivo, extrovertido, violentamente pacífico cidadão...
Quem carrega nas costas o peso de tanta coisa levanta com dificuldade, os psicotrópicos da noite anterior enfraquecem as pernas, o ódio turva o raciocínio e o amor amolece a pedra que as pessoas chamam de coração.
Para o corpo, descanso, a noite anterior fez estragos, o dia exige reparos. Para a mente, atividade elevada, é a senhora do momento. O coração? Nada em especial, jovem demais para enfartar...
Assalto à geladeira, a garganta rebelada reivindica água, assalto à despensa, o estômago amotinado cobra alimento. Estilhaços de uma bolacha maisena lhe rasgam o céu da boca enquanto o âncora cospe sangue na TV. Indignação (fingida ou não) dá o tom diante das câmeras, o que teria pensado o policial antes de deixar as vísceras escorregarem por entre os dedos?
Muda o canal, tiroteio fere criança em favela. Muda, marido esfaqueia esposa. Muda, bombardeio mata família no Oriente Médio. Porra! Abre a porta da varanda...
Bom dia aos pássaros que ainda não caíram nas gaiolas, de fio em fio, de árvore em árvore. Bom dia ao Sol agressivo que empurra as pálpebras para baixo, o braço esquerdo improvisa uma viseira, o direito segura a grade. A primeira olhada para a rua e acha alguém pior, um desconhecido dorme na calçada como se estivesse morto, ao lado, a pixação com quatro palavras e cinco erros de português.
Nem varanda, nem TV, nem a rua. Restou o rádio. Liga na primeira estação, uma garota norte-americana com seu “i shake my ass” que lhe causaria uma ereção se o rádio não fosse só som, troca de estação à espera de algo mais edificante, não perde a esperança nem ao ouvir a Ivete Sangalo. Terceira rádio: “Agora, meu irmão, minha irmã, coloque um copo com água na frente do seu rádio...”
Daria certo? Corre até a geladeira tão rápido quanto sua ressaca lhe permite, na prateleira da porta, encontra a bebida, volta para perto do rádio a tempo de ouvir o final da benção: “com muita prosperidade, amém...”
Está abençoado o líquido. Ele levanta o anel metálico, ouve o pequeno estampido, dá o primeiro gole na cerveja e exclama em voz alta:
É... acho que agora sara...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Kryptonita




“Sobe, janelinha!”
Um minuto, dois minutos... Nada.
Uma eternidade. Cada segundo equivalia a uma hora, cada pessoa que aparecia no msn era uma nova decepção.
Vez ou outra ele clicava nas fotos das redes sociais. A imagem paralisada dela o fazia esquecer do tempo. “Que sorriso!”. Era como se tivesse tirado a foto olhando para ele, a imagem tinha vida e atraía a veneração do rapaz. Cada nova fotografia lhe causava uma sensação incomum, semelhante ao que sentem os católicos fervorosos quando observam o rosto dos santos nas esculturas sacras. Incrível era pensar que ela não estava olhando nos seus olhos, e sim, na lente da câmera.
Sem se dar conta, passou mais de duas horas sonhando acordado. Tempo hábil para planejar o que dizer? Talvez. Segurança total na fala? Nunca. Havia sempre o risco de falar alguma besteira, por mais que se preparasse. Era como uma partida de xadrez, um movimento em falso poria tudo a perder.
A testa toca a mesa do pc, ele respira calmamente, ela o visita em seus pensamentos. Há beijos, abraços, carícias, conversas casuais sob a luz do luar, tudo muito fácil. Fácil e mágico.
Pouco mais de dois minutos com a cabeça baixa e um barulho o desperta de seu transe. Ergue os olhos quase sem esperança, que se abrem de forma incomum quando alcançam a cobiçada imagem daquele rosto.
O cenário de todos os seus flertes virtuais se repete: um clique, um “oi”, um emoticon ridículo, um coração acelerado e quinze ou vinte segundos de espera angustiante. Ela responde, pergunta se está tudo bem. Agora vai:
-         Tá tudo bem sim. Ocupada?
-         Não.
-         Queria falar com você...
-         Comigo? Pode falar.
-         Sabe o que é, faz um tempo que tô querendo falar contigo...
-         Hum... que honra!
Ela não estava sendo sarcástica. O melhor aluno da turma, o homem genial, homenageado na câmara municipal, capa de revista de economia, jovem empreendedor... eram tantos os méritos que ele atraía fãs por onde passava. Era o tipo de homem que fazia os pit-boys desejarem trocar os músculos por um cérebro. Nos quadrinhos que leu durante a infância, até o Superman um ponto fraco: podia ser parado pela kryptonita. Ele não, não havia meios de deter sua ascensão em todos os aspectos da vida. Todos queriam ser como ele, todos queriam sê-lo por um dia, não existia um só indício de fraqueza visível em sua personalidade. Existiria um calcanhar de Aquiles? Pouco provável, tinha tudo precocemente: conquistas materiais, sofisticação cultural, experiências em outros países, maturidade incomum. Era invencível.
Três minutos de espera e ela volta a digitar:
-         Cadê você? Não queria falar comigo?
-         Sabe o que é? Queria saber uma coisa...
-         Saber o quê?
“Bom, é agora ou nunca!”
-         Seu irmão tá bem? Fiquei sabendo que ele torceu o tornozelo no jogo de ontem...
-         Meu irmão? Ele nem jogou! Tá louco?
-         Ah tá. Então me enganei, deve ser outro cara.
É nunca. Maldita timidez...