Na Estrada de Ogum

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Casamento



Ele abre os olhos lentamente, não sabe quanto tempo se passou. A visão clareia aos poucos, vê gente de branco, lembra de alguém ter gritado algo com “ambulância” logo que ele caiu. É um alívio, tanta gente de branco... Deve ser o Céu.
Sempre se perguntou se iria para o Céu após a morte, as lembranças das noitadas na Rua Augusta, as experiências sexuais e químicas e o estilo de vida politicamente incorreto sempre assombraram o católico que ele sufocou em algum lugar do seu subconsciente.
Pouco a pouco, percebe que a dúvida o atormentará ainda mais alguns anos. Está vivo, ela está ao lado da cama, olhando para ele com cara de choro. Segura sua mão, pergunta se está tudo bem. Mas há algo errado, ela está vestida de noiva! Notar o vestido o faz voltar algumas horas no tempo e, antes que pudesse dizer qualquer palavra, embarca, como que em transe, numa pequena viagem em busca de respostas...
Ela dizia que gostava dos pelos que ele tem no peito, não sabia o incômodo que eles causavam por baixo de um terno numa cansativa noite de verão.
Ele sentia o suor escorrer sob a camisa, fazia cócegas, mas não podia largar a noiva para se coçar no meio da sessão de fotos.
Os flashes golpeavam as retinas do casal incessantemente, acrescentando mais um elemento estressante à pesadíssima maratona que percorriam para cumprir um protocolo social. O noivo disfarçava a irritação, tinha a sensação de que só ele não bebeu o suficiente para achar graça em tudo aquilo.
Sua mente volta mais uma hora no tempo, sai do salão de festas e adentra a igreja. Ele mal conseguia manter a pose na hora do sermão do padre, não aceitava que seu casamento precisasse do “sim” daquele sujeito. Uma instituição que prega a manutenção da virgindade até o matrimônio ostenta poder ao autorizar a união de um casal já acostumado ao Kama Sutra. Hipocrisias à parte, casar de branco era o sonho dela. Haja dinheiro...
De volta ao salão, os flashes davam uma folga, mas só depois da patética foto em que tomam champagne com os braços entrelaçados. Ele nem gosta de champagne...
Seus olhos percorreram o salão, seus amigos se divertiam longe dele. Chopp, caipirinha e petiscos aos milhares. Um custo altíssimo para o seu padrão de vida, mas talvez uma despesa paga em prestações a perder de vista seja o termômetro ideal para medir o sucesso de um casamento moderno. A vitória consiste em fazer a união durar mais que a dívida contraída com a festa.
Volta alguns anos e lembra de quando se apaixonou, ela parecia perfeita. Chegou a procurar algum defeito, sempre foi um cara realista, ela tinha que ter algum problema... Parou de pensar no assunto quando conheceu a tia gorda. Chega a pensar que alguns homens podem ter “trocado de lado” ao tomarem tal criatura como referência de mulher. Sempre falando alto, com a barriga escapando por baixo da blusa, os mamilos visíveis sob o algodão das roupas, como se berrassem “estamos aqui!” Tudo acompanhado pela maldita maquiagem cafona, com a qual sempre lhe borrava as bochechas. Sim, ela tinha um defeito: ser sobrinha da tia gorda...
Volta ao salão, no fim da festa ele já pedia a Deus para que o Buffet encerrasse logo a cerimônia. “O momento mais importante da sua vida” diziam alguns de seus parentes, ele pensava: “A balada mais cara da minha vida.” Percebeu, perspicaz que era, que aquela noite haveria de ser mais cansativa para ele próprio do que para os garçons, seguranças e trabalhadores em geral envolvidos no evento. Chegou à conclusão que é de uma injustiça incalculável que os protagonistas do evento estivessem, na verdade, servindo aos convidados, proporcionando-lhes a farra e a bebedeira gratuitas.
Todos os amigos já estavam bêbados, um outro estado de espírito. Ele se enfurecia em segredo, estava sóbrio o suficiente para notar a chegada da tia gorda, que o abraçou com as mãos cheias de coxinhas. Foi a última coisa que notou antes de desmaiar...
Volta ao presente.
-Oi, amor. Estraguei a festa?
-Imagina?! Isso lá é hora de se preocupar com festa? Quase me matou do coração, achei que ia perder o marido no dia do casório!
-Tá tudo bem. Foi só o nervoso, desculpa pelo susto...
-Você não tem que pedir desculpas. Você tem é que repousar! Estamos esperando o resultado dos exames, vai precisar se cuidar hein rapaz?! Sorte sua que agora me tem como esposa! Agora olha, tem uma pessoa que te adora querendo te ver!
Ela sai da sala, ele respira fundo. Imagina que a situação talvez não seja tão ruim, ser paparicado pela mulher que ama é um sonho para a maior parte dos homens, talvez por isso eles sempre façam o costumeiro drama masculino toda vez que adoecem.
No final das contas, aquilo parecia mesmo o Céu...
Só parecia! Ouve passos, vira o pescoço na direção da porta pela qual sua esposa saiu e a vê retornando acompanhada. Não confia nos seus olhos, esfrega as vistas, faz um esforço para levantar um pouco o tronco com relação à cama e vê de mais perto. A tia gorda se aproxima, sorriso aberto, batom nos dentes, mamilos gritando. Lá vem o beijo.
Ele fecha de novo os olhos, pela última vez.